Parece que grupos ultraconservadores, como o MBL, encontraram um terreno fértil para explorar, podendo assim garantir que sua agenda obscurantista e retrógrada continue pautando o debate político nacional: o moralismo de ocasião do brasileiro.
Com as acusações infundadas de pedofilia contra a série Criança Viada no Queermuseu e a performance do artista Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna, os nossos conservadores, os mesmos que são indiferentes às crianças de rua e que defendem a redução da maioridade penal, demonstraram ter preocupação com as crianças, mas onde elas não estão correndo perigo. Ainda: essas mesmas pessoas são as que mais defendem o sistema econômico dominante, cuja exclusão que provoca tem as crianças como uma das maiores vítimas.
Por conta disso, já que eles dizem se preocupar tanto com as crianças – em museus – e para aproveitar esse clima do dia das crianças em que muitos deles colocaram como avatar fotos deles da infância no Facebook, que tal lembrarmos como o capitalismo, o sistema que eles consideram ideal, tratou e trata as crianças de todo mundo, seja em seu minúsculo centro desenvolvido ou na sua gigantesca periferia subdesenvolvida? Ou dos abusos que instituições que eles consideram sagradas, como Igreja e família, praticam contra as crianças? Será que eles irão se indignar com situações em que as crianças realmente estão vulneráveis?
1. (Neo)liberalismo econômico

Essa era a realidade de milhões de crianças nos EUA no século XIX, período em que o liberalismo econômico era a regra. Na época, metade da população dos EUA se encontrava na extrema pobreza.
Ainda no mundo desenvolvido, o neoliberalismo provocou desemprego, aumentou as desigualdades e encareceu o custo de vida, tornando milhares de famílias sem teto. Como consequência da crise de 2008, provocada pela desregulação financeira, uma das exigências da agenda neoliberal, hoje cerca de 47 milhões de estadunidenses vivem abaixo da linha de pobreza e o número de daqueles que vivem em habitações precárias e de sem teto nos EUA aumentou.
Em 2013, aproximadamente 20 milhões de estadunidenses viviam em parques de trailers, equivalentes às nossas favelas e, em janeiro de 2016, mais de 500 mil estadunidenses não possuíam uma casa para morar. Entre elas, as crianças. Na cidade de Nova Iorque, dos 60 mil moradores de rua, 25 mil são crianças. No geral, houve um aumento de 34% de crianças sem-teto nos EUA.
2. Armas de fogo
Ainda no suposto paraíso dos conservadores, os EUA e dedicado especialmente aos conservadores que defendem a liberação total de armas de fogo no Brasil, um movimento que vem ganhando força, sendo o ultraconservador Bene Barbosa um dos seus maiores representantes. De acordo com os estudos do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, nos EUA, país em que porte de armas é liberado, 4,2% das crianças estadunidenses testemunharam um tiroteio e em torno de 1300 delas morrem por ano devido a acidentes ou crimes envolvendo armas de fogo.
Na foto, Hayden King, de 9 anos e Harper Edens, de 5 anos, ambos mortos pela própria mãe com uma arma de calibre .40 pega na casa de seus pais, na Carolina do Sul.
3. Fome

Mesmo que hoje a produção de alimentos seja mais que suficiente para alimentar toda a população mundial, em torno de 16 mil crianças morrem de fome por ano, segundo o relatório da ONU publicado em 2015. Lembremos ainda que aproximadamente 50% dos alimentos produzidos mundialmente são descartados a cada ano.
Por que isso ocorre? Simples: porque o modo de produção de alimentos dominante é baseado na propriedade privada de grandes extensões de terra, ou latifúndios, que visa apenas o lucro, como o “agronegócio” tão elogiado nas vinhetas da Globo. Desta forma a distribuição dos alimentos produzidos atendem à lógica de mercado, não às necessidades humanas. Em um mundo dominado por essa lógica, é preferível deixar os alimentos estragarem ou descartá-los com a intenção de valorizar seu preço a doá-los para famílias necessitadas.
Enquanto isso, os conservadores acusam o único meio possível de possibilitar alimento para todas as crianças, a Reforma Agrária, de “comunismo”. No Brasil, 70% dos alimentos são produzidos por pequenas propriedades, mostrando o potencial da agricultura familiar.
4. Abuso sexual de crianças em igrejas e na própria família
Os conservadores veem pedofilia onde não há, como fizeram ao forçar as desnecessárias polêmicas do Queermuseu e do MAM, já mencionadas. Mas ignoram onde a esmagadora maioria dos casos em que abusos sexuais realmente ocorrem: na própria família e nas igrejas.
No Brasil, em torno de 64% dos casos de abuso sexual contra crianças de até 6 anos acontecem dentro de casa, sendo os autores geralmente os próprios familiares da criança ou amigos e vizinhos da família. E um dado curioso: quem mais expõe esse tipo de abuso são as famílias de baixa renda, que fizeram 95% das denúncias. Isso não significa que tais abusos tendem a não ocorrer nas classes média e alta, no entanto são abafados, por medo de que a exposição faça a família perder status.
Já nas igrejas, os casos de pedofilia proliferam. Mais de 4,5 mil casos foram registrados na Austrália e mais de 10 mil casos nos EUA. No Brasil, vários casos de pedofilia praticados por pastores evangélicos vieram à tona, como o do pastor Nelson Pereira Souza, que abusou de uma menina de 12 anos, no Rio de Janeiro; o pastor e ex-candidato a vice-prefeito (PSD) de Cuiabá (MT), Paulo Roberto Alves, flagrado com meninas de 11 e 16 anos; e os pastores Antonio Ramos da Silva e Cosme Gama e Silva, ambos da Igreja Universal, acusados de abusarem de meninas, também na faixa etária entre 11 e 16 anos, em Esperança, Pernambuco.
5. Guerras e conflitos

Em guerras e conflitos as crianças são as que mais sofrem, ainda mais por, ao testemunharem ataques bárbaros (quando não são as vítimas deles), passarem por traumas que podem comprometer seu desenvolvimento até a vida adulta, inclusive tornando-as mais propensas a desenvolver doenças. Na guerra civil da Síria, cerca de 6 milhões de crianças foram atingidas, dependendo hoje de ajuda humanitária. E, mesmo após o desfecho dos conflitos, as consequências da guerra são ainda fatais, ainda mais quando há a falência do Estado, como ocorreu no Iraque, onde 1 em cada 5 crianças correm risco de morte.
No Brasil não temos guerras declaradas, mas conflitos que matam tanto quanto, como os que ocorrem entre traficantes e a polícia. Em uma década, 35 crianças foram mortas em trocas de tiro entre facções de traficantes ou entre estas e a polícia.
6. Exploração de trabalho infantil

Enquanto os conservadores brasileiros se horrorizam com uma ameaça inexistente em museus contra as crianças, se calam sobre o aumento da exploração infantil que ocorre no seu próprio país. De acordo com o IBGE, aumentou o número de casos de trabalho infantil de crianças entre 5 e 9 anos no Brasil. Devido à extrema desigualdade social no país e o descaso do poder público, hoje cerca de 80 mil crianças brasileiras estão trabalhando para ajudar suas famílias pobres, quando deveriam estar na escola.
Já em todo mundo, em um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), foram registrados 154 milhões de casos de exploração de trabalho de crianças e jovens menores de 18 anos.
Você já viu algum conservador se indignando contra isso? Muito pelo contrário. Um post da página conservadora ILISP, em que defendia o trabalho infantil usando a falsa polêmica do MAM, teve mais de 300 mil compartilhamentos entre os conservadores e neoliberais de internet.
7. Violência institucionalizada

Nas periferias do Brasil as políticas públicas são praticamente nulas e os direitos básicos de cidadania não são respeitados. Faltam escolas, cultura, esporte, lazer, centros de formação, hospitais, mas sobra violência policial. Evidentemente quem mais sofre nesse cenário de terra arrasada são as crianças, que ficam expostas a todo tipo de abusos, seja dos traficantes de armas e drogas, seja da polícia, entre tiroteios, espancamentos, torturas e assassinatos, em que os negros são os que mais morrem.
As intervenções policiais nas periferias do Brasil já provocaram, em 12 anos, a morte de 80 crianças até 12 anos, 60% delas só no Rio de Janeiro. E, quando não matam, deixam graves sequelas. Em 2015, na favela Marcone, em São Paulo, Douglas, então com 12 anos, foi uma dessas vítimas: um tiro de borracha disparado pela PM o deixou cego de um olho.
8. Marginalização e abandono

Em todo mundo, mais de 150 milhões de crianças vivem nas ruas, sendo 24 mil delas brasileiras. As causas podem ser sociais, como desestrutura familiar, violência doméstica e extrema pobreza; e se agravam com o descaso público, como falta de investimentos em educação e saúde, e ausência de políticas de apoio à infância.
9. Poluição e falta de investimento em saneamento básico
A cada ano, em torno de 1,7 milhões de crianças com menos de 5 anos morrem de doenças como diarreia, pneumonia e malária, causadas pela poluição e falta de acesso a água potável e tratamento de esgoto. No Brasil, a insuficiente estrutura de saneamento básico expõe quase 5 milhões de crianças a doenças.
10. Descaso com a merenda escolar
Para finalizar, a indiferença dos conservadores a dois casos graves: o escândalo de corrupção da merenda no governo Alckmin, no Estado de São Paulo, e ao controle humilhante das merendas nas escolas municipais da cidade de São Paulo, onde Doria é prefeito. Em ambos os casos as crianças são prejudicadas, já que criança com fome tem seu rendimento na escola comprometido.
Mas para quem demoniza espaços de cultura como os museus, dizendo apenas estar defendendo as crianças, deve ser mesmo difícil compreender a importância da escola, ainda mais se garantir não só a formação, mas também a dignidade na infância, não é mesmo?