O remake hiper-realista do Rei Leão estreou nos cinemas brasileiros no dia 18 de julho e com ele reacendeu a polêmica sobre qual o real significado político do filme original de 1994.
Um artigo publicado no dia 10 de julho no Washington Post, intitulado ‘The Lion King’ is a fascistic story. No remake can change that., afirma que a obra Rei Leão é de inspiração fascista. O artigo provocou incômodo entre a direita a ponto do Arthur do Val (Mamãefalei) gravar um vídeo defendendo que Rei Leão não é fascista, mas conservador “do bem”; do Roger (Ultraje a Rigor) xingar muito no Twitter e de se tornar pauta para DOIS artigos indignados da mídia conservadora Gazeta do Povo em “‘O Rei Leão’: fascismo da natureza exalta Civilização que esquerda tanto ataca” e ““O Rei Leão” é fascista?“.
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No entanto, a verdade, incômoda não só para os reaças que se irritaram com o artigo que acusa a animação de fascista, mas para o seu próprio autor, o liberal Dan Hassler-Forest, é que a história do Rei Leão pode legitimar qualquer sistema ou doutrina hierárquica que naturaliza a desigualdade, não só o fascismo, mas inclusive o próprio pai de todas as opressões do mundo moderno, o capitalismo. E isso, na indústria de entretenimento, é de praxe (apesar de também existir nela críticas ao sistema, mesmo que em menor escala, e cujas mensagens tendem a ser distorcidas ou ignoradas pelo grande público).
Mas como a denúncia da ideologia conservadora na cultura pop sempre é bem-vinda, permitamo-nos fazer uma análise mais crível da ideologia por trás do Rei Leão. No caso, o clássico original de 1994 (o remake hiper-realista é a mesma história, apenas detalhes mudam). Aqui, exporemos a ideologia conservadora por trás da animação em todas as suas facetas, sem cair no discurso fácil do “tudo o que não gosto é fascismo”, como quis Dan Forest.
De qualquer forma, mesmo que consideremos a interpretação da direita, expressada por Arthur do Val e Gazeta do Povo, de que não se trata de fascismo, mas sim de um conservadorismo “limpinho e cheiroso”, que enaltece “o melhor da civilização ocidental” ou que mostra a “importância dos pais fundadores”, tal tentativa de jogar o fascismo para debaixo do tapete e desqualificar Dan Forest como “esquerdalha” desonesto será um esforço em vão. E é justamente esta a proposta do presente texto: denunciar que, mesmo se considerarmos Rei Leão uma apologia ao conservadorismo e liberalismo clássicos, as implicações disso continuarão depondo contra a direita.
Antes de iniciar, contudo, é necessário lembrar também que o texto que segue não tem a pretensão de ser a verdadeira e definitiva interpretação do Rei Leão. Pelo contrário, o texto também levanta questões que ficam em aberto. A animação possui uma história com arquétipos e simbolismos universais, o que lhe dá margem para diversas interpretações. Apesar do texto ser uma interpretação livre, as considerações são baseadas na relação entre a história da animação e o contexto social e político em que foi criada, tendo sempre o cuidado de não cair em opiniões precipitadas ou infundadas.
Rei Leão é uma defesa do Status Quo
Direto ao ponto: a história do Rei Leão está impregnada de ideologia supremacista branca, cristã, machista, homofóbica, liberal e meritocrática. Basicamente, Rei Leão nos ensina a não questionar o Status Quo. Começando pelo fato da historia ser uma monarquia absolutista, onde todos os animais devem se ajoelhar perante o Rei Leão.
Mufasa representa o homem branco, conservador e cristão. Aos outros animais, aos não-leões, cabem representar as etnias não-brancas e seus respectivos países e culturas. Mufasa, em sua posição autoproclamada de líder, é quem dita as regras para todos os outros animais.
Em uma conversa com Simba, Mufasa fala sobre a “perfeição” e o “equilíbrio” do “Ciclo da Vida”, que não passa de um eufemismo para o estilo de vida capitalista estadunidense, de origem anglo-saxã.
Como todos os animais se encaixam perfeitamente nesse ciclo (contanto que se submetam sem questionar), nessa estrutura hierárquica em que os leões estão no topo, é o destino natural destes devorarem os antílopes. Aqui encontramos um eufemismo para a exploração capitalista.
Os antílopes, por sua vez, resta se alimentarem de mato que cresce apenas após a morte dos leões, cujos corpos em putrefação adubam a terra. Está feito o eufemismo para as migalhas que os capitalistas oferecem aos pobres sob forma de “caridade” ou por meio da “criação” de empregos precários. É a suposta benevolência daquele que explora, sem nunca reconhecer a autoria e consequências da exploração que promove. O cinismo típico do estadunidense branco, rico, meritocrático e cristão.
As minorias são os vilões da história

Na mesma cena, o Simba pergunta sobre o Cemitério dos Elefantes, quando é prontamente advertido por Mufasa pra nunca ir lá. Lá vivem as hienas “vagabundas”, entre elas as três principais da história. Cada uma delas representa as três minorias mais exploradas ou estigmatizadas nos EUA: Shenzi representa os negros (dublada pela Whoolpi Goldbert), Ed representa os Latinos e Banzai os Asiáticos. Já Scar, o vilão mor, evidentemente tem que representar os muçulmanos.
Os habitantes do cemitério de Elefantes são a clara representação dos excluídos do capitalismo dos EUA; são os rebeldes, os que não se ajoelharam/submeteram. Inclusive, se você assistir a versão original em inglês, essa representação fica ainda mais clara pelo linguajar e gírias que esses personagens usam.
Repare que na primeira cena que Scar aparece, diferentemente dos outro leões, ele é solitário e magro; Scar claramente não se beneficia do tal “ciclo da vida” que Mufasa tanto elogia. Seria a dicotomia maniqueísta entre os “irmãos” semitas Israel (Bem) e Árabes (Mal)?
Daí vem a inevitável pergunta: já que Mufasa é um rei tão “justo”, todo poderoso e o ciclo da vida é tão “perfeito”, por que ele deixa o irmão passar fome e viver solitário? Simples: porque Scar não se submete ao Mufasa! O ciclo da vida só beneficia aqueles que se submetem ao status quo!
Não podemos deixar de observar também que Scar é levemente afeminado (homofobia?) e não se encaixa nos padrões cis normativos de virilidade masculina (cis sexismo).
Até aqui, o que Mufasa fez foi apresentar, naturalizar e legitimar o Status Quo para Simba, o qual só será digno do seu reinado se continuar o ciclo “perfeito”, cabendo a Simba o defender de qualquer um que ousar quebrá-lo.
Essa ousadia será uma iniciativa de Scar, que preparou um plano infalível para matar Mufasa, assim como os terroristas árabes planejam minuciosamente onde irão explodir a próxima bomba ou o alvo do impacto do próximo avião sequestrado.
Como Scar sabe que Simba representa uma ameaça, ele tenta matá-lo manipulando as hienas, em uma referência sobre como as “massas” ignorantes são facilmente manipuladas pelo desespero, e daí dar sentido ao rótulo pejorativo de que a esquerda é “populista”. Mas Simba foge da “massa manipulada” e sobrevive.
Vale aqui relembrar a cena da canção “Be Prepared”, na qual Scar é comparado aos nazistas. Uma flagrante inversão, com o propósito de deslegitimar a reação do oprimido contra o opressor. As paranoias da “ditadura “gayzista”/”feminazi” e da “ditadura comunista”, que saem da boca dos reacionários, encontram eco nessa cena.
A decadência do “socialismo” hakuna-matateiro
Simba é salvo por Timão e Pumba, que vivem em um oásis paradisíaco anarco-socialista, onde não há hierarquias e eles vivem livremente. Aqui vemos uma alusão à esquerda (no sentido estadunidense, ou seja, além dos progressistas e socialistas, inclui-se também os liberais identificados no partido democrata) que os estadunidenses conservadores tanto temem.
Timão e Pumba também podem ser a representação de um casal homossexual. O “Stage” de Timão e Pumba (e sua ideologia Hakuna Matata) podem parecer bonitinhos, mas escondem uma propaganda para difamar tudo que vai de encontro aos valores morais cristãos, anglo-saxões e pró capital. É apresentado como algo “bom” justamente pra ser desfeito posteriormente. Afinal, eles representam o life-style de São Francisco, a igualdade dos direitos civis, o que inclui as reivindicações da comunidade LGBTQs, das feministas, dos socialistas, enfim, tudo o que a direita estadunidense abomina.
Simba cresce feliz nesse meio subversivo e decadente. Paralelamente a isso, inexplicavelmente a natureza se rebela contra Scar: as chuvas cessam e a fome ataca o vale onde Mufasa antes regia, em uma alusão à incompetência do negro, do muçulmano, do latino, do não-branco. O recado: as gigantescas crises do capitalismo apenas ocorrem quando um governante não alinhado ao conservadorismo e liberalismo econômico chega ao poder.[1]
Não ouse blasfemar contra o Status Quo

Scar se atreveu a questionar essa ordem natural e sagrada, então o céu veio abaixo e todos começam a passar fome, o que nos faz lembrar de um dos mantras mais usados da propaganda anti-comunista estadunidense: comunismo é fome! (ou Colunismo pasar fone ok?).
Ao Scar virar o jogo, tudo “magicamente” dá errado. Trata-se de uma propaganda para amedrontar, para dizer que todos que se viram contra o status quo carregarão inevitavelmente desgraças. Scar blasfemou contra Deus ao desrespeitar o direito divino de Mufasa ser o Rei, um rito que jamais poderia ser contestado… Assim como jamais podemos questionar os desígnios do deus mercado e seu capitalismo. Monta-se assim uma alegoria bíblica, do Deus punitivo representado nas súbitas intempéries, do anjo decaído representado por Scar, dos amaldiçoados Adão e Eva representados pelas leoas, expulsas do paraíso por aceitarem o pecado de Scar.
Enquanto isso, na floresta que segue a filosofia “gayzista” da Hakuna Matata, Simba reencontra Nala e ambos se apaixonam. Essa união representa a pressão sócio-cultural e cristã pelo casamento heterossexual cis normativo. É um basta para o hedonismo socialista e “gayzista” hakuna-matateiro!
Por meio do sexo, Nala convence Simba a voltar e restabelecer o sagrado ciclo (status quo). No caminho ele também reencontra Rafiki, o babuíno que, como bom representante da religião, coloca a semente da culpa em Simba. Em seguida, Simba se encontra com o espírito de Mufasa no céu (outra alegoria ao deus judaico-cristão Jeová/Jesus), que reafirma em Simba o mesmo típico sentimento de culpa/pecado cristão que o faz largar tudo.
Nesse ponto, a vida hakuna-matateira de Timão e Pumba é condenada, pois, apesar de parecer boa, é uma negação do ciclo sagrado, além de fomentar vícios e a “vagabundagem”. Ou seja, é a real liberdade que implica no fim do capitalismo. Simba deve largar essa vida de perdição, voltar para restituir o Status Quo e tomar de volta aquilo que lhe pertence, que é a propriedade privada da Savana.
Simba volta, traz junto dele Timão e Pumba (estariam convertidos ao conservadorismo?), e retoma o seu lugar “de direito”. Após derrotar Scar, milagrosamente volta a chover e a Savana se enche novamente de vida, como se fosse Deus confirmando que a única linhagem reconhecida para reinar a Savana é a de Mufasa, que agora se realiza em Simba.
Por fim, Scar é morto pelas próprias hienas, representando as relações de canibalismo social que as classes oprimidas se encontram e tudo volta ao que era. Mas agora com Timão e Pumba do lado de Simba, renegando sua ideologia libertária Hakuna Matata, enquanto as hienas continuam excluídas…
E assim Simba se firma como o líder masculino, branco, conservador, cristão, heterossexual, temente a deus (mercado), com seu estilo de vida considerado “virtuoso” (obediente ao Status Quo), supremo sobre todos os outros modos de vida que destoam do sagrado ciclo, isto é, que não rezam na bíblia do capital e que não seguem a moral cristã e conservadora. Incontestável é o Rei Leão! Resta aos demais animais aceitarem e se curvarem diante do magnânimo.
Considerações Finais
Depois dessa, esperamos que você nunca mais assista ao Rei Leao com os mesmos olhos e que os conservadores que o leram tenham ainda mais motivos para vociferar contra as análises que denunciam a apologia velada ao Status Quo que ocorre na maioria das produções de Holywood e que praticamente é uma regra nos clássicos da Disney.
Sim, Rei Leão é de direita. Ponto para Arthur do Val, Roger e colunistas da Gazeta do Povo (os quais, pelo visto, andam sem assunto), mas, ao contrário do que eles dizem, esse fato não engrandece a animação, a qual se torna uma peça panfletária para crianças (e adultos) a favor de um sistema que exclui, aumenta a desigualdade e cuja dependência energética de combustíveis fósseis já aumentou a temperatura média do planeta em 1 °C, o que inevitavelmente trará consequências graves para a maioria da humanidade.
Os conservadores podem contar até com os clássicos de mega sucesso da Disney para defender o seu mundo erguido pelo homem branco de posses na base da predação de ecossistemas e do sangue dos não-brancos, mas não há ideologia que possa esconder a realidade das graves e fatais consequências práticas disso.
Afinal, enquanto o remake do Rei Leão passa nos cinemas, ensinando o rebanho a ser obediente à ordem estabelecida desde a infância, os empregados da Disney enfrentam o aumento da precarização, as pessoas vão menos ao cinema porque estão endividadas, Bolsonaro se reivindica como o Rei Leão da savana Brasil, exigindo uma hakuna mamata para si e toda sua família como um “direito divino”, enquanto as florestas do Ártico queimam devido ao clima seco provocado pela mudança climática, liberando ainda mais CO2 na atmosfera.
Por mais poderosa que seja a ideologia, ela não passará de uma grande mentira diante da inexorabilidade dos fatos. A realidade é sempre implacável para quem depende disso para sustentar que é rei por direito natural, mas que na real é apenas mais um humano, só que com muitos privilégios a serem perdidos se a ordem que ele estabeleceu for questionada.
Nota
[1] Ler o livro A Doutrina do Choque, de Naomi Klein.
Revisão de Jorge Charon.